sábado, 14 de novembro de 2009

Comentário sobre o conto de Edgar Allan Poe " O GATO PRETO"





Comentário sobre o conto de Edgar Allan Poe
O GATO PRETO
(“o gato preto cruzou a estrada,
passou por debaixo da escada...”)
A narrativa do conto é bela e instigante. E foram estas qualidades, as do escritor, que me atraíram para o término rápido da leitura.
Vítima deste fascínio, chego ao final do conto e constato que o encantamento pela forma está na razão inversa pelo seu conteúdo.
Preso numa cela, um homem narra sua história.
Ao contá-la, ele sugere que embora tendo matado sua mulher, cometido atrocidades com seu animal de estimação e também o exterminado de forma torpe, era um bom homem.
Remete-se à sua infância, dizendo que era um garoto dócil, que a maior felicidade de sua vida eram os momentos que podia alimentar seus animais e dedicar-lhes gestos de carinho. Conta que teve muita sorte, pois se casou com pessoa de igual índole.
Recorda-se ter sido motivo de troça dos colegas, por ser amável. E acreditava, desde então, que só os animais eram fiéis.
Percebe-se, assim, que a sua descrença no Outro é tão antiga, quanto às lembranças que carrega da infância. E que desde pequeno não conseguia relacionar-se, a contento, com os seus pares, condição essencial para o humano.
Cuidar dos animais, já não parece, no transcorrer de sua narração, ter sido um ato de boa índole, de um ser amante da natureza e da vida. Sugere, pois, que enquanto pôde, enquanto algo de puro ardia em seu peito, canalizou suas energias para a boa convivência com eles – uma forma de escapar do asco que sentia pelos seus semelhantes.
À medida que amadurece, este mal estar com o cotidiano se cristaliza, nele:
embriaga-se, constantemente, o que reforça o seu mau humor, tornando-o demoníaco e sem a menor tolerância com a simples presença do Gato Preto, seu bicho de estimação – a quem dera o nome de Plutão – deus do mundo subterrâneo, para os gregos.
O prisioneiro conta sobre seus delírios como se estivesse narrando ocorrências domésticas naturais. Fala de sua agressividade cotidiana, não só verbal, mas também física, contra a mulher e os demais animais que tem em casa. Nem mesmo Plutão, o seu predileto, escapa de sua ira.
Chega a furar-lhe um olho, talvez numa tentativa alucinada de fechar uma das “janelas de sua própria alma”, porque o Gato Preto o entendia, era parte dele. Como um cúmplice, era ele que o acompanhava, cotidianamente. Era o seu fiel.
Contudo, o mal cresce dentro deste homem e ele já não se suporta mais. Não vai furar o seu próprio olho, é claro. Ele tem Plutão, de visão apurada, como gato que é, e, talvez o perturbasse por este atributo.
O prisioneiro conta sua história como se dissesse que o seu infortúnio é igual ao de qualquer outro mortal. Refere-se à sua perversidade como sendo o mal natural dos humanos. Mas, isto não é verdade.
Sarcástico, diz que cora ao revelar sua monstruosidade. Quem pode crer nisto?
Ele é um assassino frio e calculista, mas não é sádico.
Parece até ser um pobre coitado, mas é perigoso. Muito perigoso.
Depois de algum tempo, de ter furado o olho de Plutão e o enforcado numa árvore de seu quintal, como ato de misericórdia da primeira atrocidade, quer muito encontrar um outro gato semelhante a ele.
E sofre com visões persecutórias: ao conseguir um substituto de Plutão, “enxerga” nele, o desenho de uma forca nos pelos de seu peito, como também a falta de um dos olhos.
Talvez quisesse até acreditar que de fato “um gato tem sete vidas”, e, que Plutão ressurgia na sua.
Porém, sua alma estava tomada de horror e em pouco tempo, quis dar fim a este novo felino. A tentativa foi frustrada, porque sua mulher se interpôs ao ato, e tornou-se a vítima fatal de sua fúria.
Ele relata a sua atitude diante do ocorrido, isento de emoção.
Assassinou a mulher com uma machadada no crânio.
E acabar com o gato ou com sua mulher, deu-se no mesmo para aquele homem.
O enforcamento de Plutão causou maior remorso que a morte dela.
A morte da esposa causou-lhe problemas de ordem prática, para escapar da punição social; porém, a morte do gato lhe trouxe tormentos n’ alma.
O homem vazio de sentimentos humanitários torna-se um monstro. E isto não quer dizer que o humano não carregue em si a raiva, a estupidez, o egoísmo e a fraqueza.
Porém, na luta contra o ódio, a intolerância e o individualismo (nos diversos níveis que acomete o ser) e, na prática cotidiana da solidariedade, da tolerância, da delicadeza e do amor, é que o homem constrói o que chamamos Humanidade.
A jornada desta construção exige um Homem de espírito voltado para o Bem, o Belo e o Verdadeiro, e que seja Livre, portanto que tenha a compreensão do alto preço de suas escolhas, sempre.
Rita Marques – 27/10/09

domingo, 25 de outubro de 2009

AS RUÍNAS CIRCULARES

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Da leitura do conto de Jorge Luiz Borges

AS RUÍNAS CIRCULARES
“somos do mesmo material do que se
tecem os sonhos, nossa pequena vida está
rodeada de sonhos”- W. Shakespeare.

Num Templo, numa Arena, num Anfiteatro...
Há um homem e ele sonha.
Viajante exaurido ele adormece, decidido.
Não é o corpo viajado e machucado que o leva ao sono.
Delibera a si mesmo adormecer.
De onde veio, ele não conta
E nem é preciso saber.

Há um homem: ele sonha!
Está num Templo, numa Arena, num Anfiteatro...
Sua mente e seu coração embalam uma vontade.








Feridas são contraídas na escalada para chegar
Ao Templo, à Arena, ao Anfiteatro...
Ele é um Homem. Um homem que sonha.

Ele sonha e por isto faz a escalada:
Vai ao Templo, à Arena, ao Anfiteatro...
Sua chegada é remédio cicatrizante:
Ele encontra sua Mandala!!!

Conhece Lodo, Pedra, Fogo, Luz, e quer Água...
Busca a energia misteriosa para a sua realização.

Ele sonhou um sonho sonhado?

É no Templo, na Arena, naquele Anfiteatro
Que o homem encontra ruínas por toda parte.
Lá, conversa com seus fantasmas.
Lá no Templo, na Arena daquele Anfiteatro
O sonhador perdoa os seus fracassos
Retoma o seu propósito.
Constrói o seu sonho tão sonhado:
Um homem “com integridade minuciosa e impô-lo à realidade”!

“Mil e uma noites secretas” foi o Tempo
Lá na Arena, no Templo do Anfiteatro
Até pronunciar as “sílabas lícitas da palavra poderosa”
Quando deu vida ao seu Sonhado.

Porém, numa cinzenta manhã
Criatura e Criador experimentam o incêndio
Sem sentir o seu calor
Combustão fria
do deus Fogo que os animou.

Lá no Templo, na Arena, no Anfiteatro
Não há morte para o Sonhado e Sonhador
Há ruínas...
De que material foi tecido este Sonhado?

Onde está o seu Templo, minha Arena, nosso Anfiteatro?
E a Criatura, o Sonhado?
Tem “alma merecedora do Universo”?
E, que vida terá o nosso Sonhado?
Rita Marques
Confraria da Leitura, setembro de 2009.


Nota: mandala: palavra sânscrita que significa círculo, uma reprodução geométrica da dinâmica relação entre o homem e o cosmo. O simbolismo da santidade e eternidade do templo aparece na estrutura mandálica dos santuários de todas as épocas e civilizações. Dá forma não apenas às cidades, aos templos e aos palácios reais, mas também à mais modesta habitação humana, pelas populações primitivas.
Representa para o homem o seu abrigo interior.

A Causa Secreta

Há alguns anos, quando li o conto “A Causa Secreta”, estava muito aborrecida com uma colega de trabalho.
Intrigava-me com seus comentários sobre algum fato desagradável, por vezes grave, que acontecia com outros colegas e até mesmo com parentes e conhecidos dela.
A forma como os comentava parecia-me dissimulada, como se ela quisesse dizer “bem feito...” – “ainda bem que não foi comigo...” ainda que suas palavras fossem de lamento.
Quando estava à beira de lhe dizer sobre meu aborrecimento, e, elaborava um jeitinho para fazê-lo, li “A Causa Secreta”.
Este conto ajudou-me a refletir melhor sobre as possíveis razões de muitas pessoas “sossegarem suas almas” ao verem o sofrimento alheio, como a referida colega.

A história contada em l885, por Machado de Assis, na “Gazeta de Notícias” e publicada 10 anos mais tarde em sua coletânea de contos “Várias Histórias”, aborda um aspecto sombrio da alma humana: A CRUELDADE.
No conto, que se passa em 1862, o requinte da crueldade revela não uma face do humano, mas apenas de alguns homens: A PERVERSIDADE.
E minha colega de trabalho não era perversa. Isto não!
Entretanto, a arte como Machado narra a história me possibilitou refletir sobre os disfarces que a maldade se apresenta no cotidiano, nas relações triviais e por vezes solidárias na dor alheia.
O protagonista, o dono da “causa secreta”, é um monstro muito bem disfarçado em um homem de bem, pronto a ser solidário ao sofrimento alheio. Um falso caridoso, que sente um secreto prazer em acompanhar a tragédia do outro.
Vale a pena ler. Leiam-no!
Considerado por vários escritores renomados como um dos melhores contos de Machado, “A Causa Secreta” também recebeu edição única e compõe diversas coletâneas. Sofreu adaptação para o cinema e para a rádio BBC de Londres.

Através do olhar observador de Garcia, o bom médico do conto, é que a narrativa nos convoca a refletir sobre o porquê da maldade e especialmente, da maldade tão gratuita.

Na leitura que fiz, há anos atrás, refletindo sobre a pista que o conto trazia, que há uma “causa secreta”: percebi que, talvez, o ser humano, por estar sempre vulnerável às mazelas da vida, conforta-se ao perceber que a vítima de um mal não é ele e sim um outro. Não deseja o mal aos outros, mas é como se entendesse que “já que é inevitável, já que alguém tem de sofrer, porque a vida é assim, que seja outro...”.
É o que penso, também, sobre a estranha curiosidade das pessoas que, sem a menor chance de ser solidária aos que sofrem acidentes, permanecem como seus espectadores.
Ao refletir por este prisma, embora o conto, necessariamente, não nos leva para este caminho, assim segui, através do grande mote: “a causa secreta”.
Passei a compreender e perdoar a atitude de minha colega de trabalho ao comentar as tragédias alheias. E de uma coisa eu tinha certeza: ela estava longe de ser um Fortunato do Conto!
E, se convivo com alguns “Fortunatos”, não tenho dúvida. Por vezes, consigo flagrá-los no meu caminho.


Agora, em agosto de 2009, releio o conto para compartilhar as impressões com os Confrades da Leitura: e é um novo aprendizado, através dos comentários no nosso encontro e do texto de Leandra!

Estamos num tempo em que a crueldade parece não ser mais o lado sombrio da alma humana, um lado que deve ser ofuscado, conscientemente, nas relações entre os indivíduos e no próprio desenvolvimento do ser humano, como tal.

Ela tomou um outro aspecto, porque é o sombrio que está sendo iluminado: a crueldade se mostra como exemplo, para ser copiada, ser invejada, disseminada...
Parece que a aberração pode se tornar uma via de regra...
Imita-se as atitudes mais perversas que as manchetes trazem a público:
crianças morrem, com requintes de crueldade (muitas vezes pelos seus próprios pais). Filhos matam seus pais ou os exploram. Crimes são cometidos de forma premeditada, por pessoas que se diziam apaixonadas. A maioria dos políticos rouba o povo de forma escabrosa e escandalosa, e ainda assim, são reeleitos. Profissionais da Saúde formam quadrilhas para fraudar e roubar, como também, no exercício de seu nobre trabalho, aniquilam a dignidade da pessoa que confia em seus cuidados. Compra-se produtos roubados ou “piratas”, como se fosse lícito. Assiste-se a inúmeros programas do tipo “video-cassetada” como entretenimento, que é uma forma sutil e perigosa de educar a alma para saborear o sofrimento alheio, assim como o Fortunato do conto de Machado.
Ah! E tantos outros crimes... mas há quem ousa duvidar se são ou não crimes.

Fica, então, a pergunta:

Qual é a “causa secreta” da nossa sociedade para conviver com estas atrocidades?

Eu, que me incomodei tanto com a colega de trabalho, há anos atrás, sinto que, hoje, deveria me incomodar mais com o que dita a nossa atmosfera social.

Esta “causa secreta” parece ser uma doença psicossocial, e, por isto devemos estar atentos e encará-la, buscando um contraponto, sob pena de sermos vítimas, duplamente.
Isto é, sob pena de não só nossa vida estar contaminada por ela, como já está, mas a nossa Essência, enquanto humanos.

Porque não sejamos ingênuos: somos tão humanos, tão vulneráveis como qualquer outra pessoa.

E a “causa secreta”, creio eu, é secreta até mesmo de seu protagonista.

De: Rita Marques. Em setembro/09.
Para: Confraria da Leitura de agosto de 2009. .